Imaginação …. a “mestra
do erro; a louca da casa”, segundo os cartesianos.
Imaginação
…. a criadora de novos mundos, “[...] a faculdade de formar
imagens que ultrapassam a realidade, que cantam a realidade.”
(Bachelard, 2002)
Passificadora …. um
universo de imagens e imaginação.
Passificadora, solo de André Bern, era uma incógnita para mim,
sabia que pertencia ao espetáculo “Senha de Acesso” (dirigido
também por ele), mas esta informação, não diminuia o
desconhecido que me rodeava ao entrar no Teatro.
Da incógnita, à experiência estética e artística que presenciei
e absorvi, tento neste momento já distante, transcrever as
impressões que me atravessaram naquela tarde de sexta-feira, na
apresentação dos Novíssimos, ocupação do Teatro Cacilda Becker
no Rio de Janeiro, pelo Festival Panorama.
Do intervalo de tempo entre o desconhecido inicial e o conhecido do
fim surgiu uma emoção pelo contato com imagens tão verdadeiras e
livres que se desdobraram em muitas outras. Imagens simbólicas e
delicadas que sem revelar sua intimidade, denunciavam mundos
possíveis.
André me encantou com seu silêncio repleto de reverberações.
Meu primeiro deleite neste encontro foi com as costas de André. Em
pé, com a cabeça voltada para o chão, suas costas nuas, me
pareciam sem cabeça e perdiam a conformidade com a ideia de corpo
estabelecido. Seus braços e dedos em movimento, pareciam buscar
longe algo perdido, e esta procura movimentava seus ossos e músculos,
compondo um diálogo mudo e agradável. Embarquei nesse diálogo e
nele ficaria por horas, mas eis que a realidade me pinçou deste
devaneio pela primeira vez. A imagem esmaeceu e se transformou.
As imagens levavam a fantasias, que se insinuavam e antes mesmo de se
estabelecer, já outra imagem surgia, num jogo de revelações e
ocultamentos.
Essa brincadeira manteve-se por todo o tempo, e em determinado
momento, dei-me conta da força e autonomia das imagens que,
atravessavam a matéria do artista, convertendo-se em uma comunicação
invisível. O corpo do artista, afirmou-se como obra de arte, sede
das construções, das experiências, dos conflitos, sugestões e
dúvidas que nascem em um corpo que não é pacífico e nem tampouco
passivo. O
universo interno (inconsciente?), sem forma, se exteriorizou,
compondo
imagens políticas, agressivas, e doces. Nas
imagens que iam se sucedendo, o corpo assumia atitudes, vivenciando
sentimentos e sensações dessas construções.
Nesse jogo o devaneio surgia e embalava o artista na vivência da
imagem. Eu, com o público, devaneava
com André em cada imagem, criando personagens e narrativas.
No entanto, antes que eu me embriagasse da imagem, havia um despertar
que trazia o artista de volta a cena e eu de volta à platéia. Esse
jogo me remeteu ao duplo, como possibilidade de coexistência, e esse
duplo era responsável pela quebra da magia e retorno a realidade.
Fragmentação característica de nossa era contemporânea.
A Arte Contemporânea não é linear e reprodutora de padrões
socialmente aceitos. Ela tráz um desconforto porque é
questionadora, não deixa o público passivo e inerte, além disso
reproduz a confusão, a velocidade e a fragmentação dos nossos
dias.
Com a fragmentação vieram muitas imagens/narrativas: um muçulmano,
um artista rico em uma echarpe, um modelo de um pintor
renascentista, uma noiva, um ser da terra disforme e ao mesmo tempo o
artista em sua essência e plenitude a serviço das imagens e das
provocações, que de forma alguma permite um corpo/artista passivo.
O artista assume riscos, atitudes, posições; não é possível ser
passivo. Na obra, o corpo é trabalhado e superado, some o gênero,
some a personalidade, some a individualidade para se configurar a
universalidade.
O filósofo lituano Emmanuel Levinas utiliza a metáfora do “rosto”
como o encontro com o infinito. “O rosto é o lugar onde nos damos
conta do infinito que é o outro”. (Koneski, 2008) Olhar a obra de
arte como rosto é se deparar com esse infinito, onde não há a
facilidade do invisível
que está a nossa frente para ser descortinado, e sim o mistério do
desconhecido que afeta mas não esclarece.
André em pouco tempo, construiu e desconstruiu imagens, construiu e
desconstruiu um novo corpo. Sonhou, se contorceu, viveu. Em pouco
tempo passou por estados alterados de percepção, memória, e
provocou o público. Uma senhora ao fim do espetáculo, relatou a
vivência de uma das questões do trabalho que ela não podia nomear. Houve a troca de experiências, de mundos, de vidas que se aproximam em suas questões e símbolos.
A obra de arte revelada naquela tarde, não desvelou o universo
imagético. Permitiu que o público pudesse experimentar esse estado
de construção que não chega a se completar, que fica no limite, no
entre, no ar.
Bibliografia:
BACHELARD, G., A água e os sonhos. São Paulo: Martins
Fontes, 2002.
Koneski, A.P., O Murmurio na Arte Contemporânea. In: Makowiecky, S.
e Oliveira, S.R. (org.) Ensaios em torno da Arte. Chapecó: Argos,
2008.
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