O vento leva, remexe, troca as coisas de lugar. Refresca o corpo,
refresca a alma; bagunça o pensamento numa brincadeira sútil e
lúdica.
Entrar no teatro e ver o vento, trouxe muitas sensações e
recordações. A cortina balançando na janela levou-me para outros
lugares, vieram lembranças, poéticas saudades. O tecido não
parava, o pensamento também não, ou seria o sentimento? O som do
ventilador ligado afirmava a sensação do vento na imaginação. O
vento me fez sonhar, tirou-me o peso da gravidade do dia e colocou-me
em um estado de contemplação. Cena bela que inicia o trabalho
coreográfico de Gabriela Alcofra, intitulado “Movimento sem Face”.
Minha primeira reflexão foi sobre o olhar do artista, que consegue
encontrar poesia nos elementos mais simples da vida; que consegue
elaborar ações humanas a partir da aridez do nosso convívio
social; que consegue provocar politicamente, e transformar os
materiais mais diversos em uma nova significação.
As elaborações artísticas não tem uma direção clara e continua;
e para cada criador abrem-se horizontes com múltiplos caminhos. Nos
trabalhos autorais que tenho oportunidade de ver, percebo a
fidelidade do artista às angustias que surgem no dia a dia.
Perseguindo os incômodos que surgem, trilham um caminho de
questionamento do ser e fazer, caminho verdadeiro e sem conforto.
Gabriela constrói uma cena leve e delicada, que se transforma com
sua presença e seu movimento. Percorrendo o espaço cênico em
deslocamentos variados e com diferenças de densidades, vai
questionando a leveza do vento e a liberdade do corpo.
Liberdade é uma ideia que surge ao longo das cenas – a liberdade
da janela, do vento, do movimento e do corpo que vai sendo castrado,
revelado e coberto. Essa dualidade de estados me fez lembrar de
Cecília Meireles que diz,: “Liberdade é uma palavra que o sonho
humano alimenta, que não há ninguém que explique e ninguém que
não entenda.” Em nossa sociedade, um sonho que se faz ilusão,
palavra estéril repetida tantas vezes, que nem sempre frutifica
caminhos, mas que é alimentada coreograficamente.
O corpo de Gabriela parece viver intensamente o desejo por essa
liberdade entendida e perdida. Surge um questionamento do corpo, que
vive sentimentos múltiplos e dialéticos. A cabeça em movimento
liberado pelo espaço parece buscar respostas, mas desnorteia o corpo
e o próprio caminho. O figurino vai se modificando, numa inspiração
de sensualidade e realidade de castração. O sonho do início
transforma-se em dura realidade, o corpo é sacudido e
aprisionado, é agora um
corpo sem face com as implicações dessa ausência.
Um véu surge, e traz a sensação de sufocamento. Na ação de
torcer o véu, o rosto adquire contornos, revela uma existência que
é física, material e simbólica. A torção do véu parece
comprimir a vida em um movimento mecânico e denso. A castração
surge como resultado de uma amarração poética em um novo corpo
construido a partir das relações de liberdade verdadeira, vigiada e
reprimida.
Olhando a vida, o artista faz escolhas e as vezes nessas escolhas
surgem elementos da própria vida que vão embalando a obra. O
artista é um eterno questionador
com sua percepção e seu sentimento aflorado. Questiona a vida, a
sociedade, a arte e sua produção também. Falando sobre a sua
construção, Gabriela destaca uma inquietação percebida no próprio
fazer da Dança Contemporânea. O rosto e sua expressão, ou a falta
dela, levou-a a pensar sobre a neutralidade (seria nulidade?) que
conduz os corpos, os movimentos e os conteúdos trabalhados
cenicamente na nossa era contemporânea.
Longe da estrutura narrativa tradicional, a Dança Contemporânea não
é esvaziada de temas e conteúdos, eles estão presentes de outra
forma, talvez acompanhando a sociedade que se apresenta de forma
segmentada, desconstruída ou simplesmente reformulada e repaginada.
Da observação do rosto e da expressão, o seu trabalho de pesquisa
foi ampliando-se e alcançando estruturas culturais diversas
da nossa vivência. O contemporâneo questionado alcançou o
tradicional de uma sociedade distante,
e pensando em tradição, o corpo é a nossa maior tradição.
Nosso corpo continua sendo o que era para nossos ancestrais, comunica
gestos culturais que não se perderam com a ausência
de nossa manifestação social e política. Ele continua contando
histórias em segredo, exteriorizando sensações e emoções que as
vezes ainda não irromperam na consciência.
O corpo sem face encontra uma outra forma de comunicar,
potencializando partes outrora discretas. Gabriela , e seu corpo sem
face, encontra movimento, encontra a poesia necesária para dar forma
as angústias e as emoções, transformando a vida.
O crédito das fotos do espetáculo são de Diana Sandes