Jogo Sem Objetos
Estréia amanhã no Sesc Copacabana, no Rio de Janeiro, o espetáculo "Jogo sem objetos" que é o resultado de um processo de pesquisa e criação que Giselda Fernandes vem desenvolvendo há algum tempo, na elaboração das suas inquietações, práticas e reflexões.
Em abril, Giselda apresentou um trecho deste processo que já se desenvolvia e as suas inquietações reverberaram em mim em reflexões que materializei em um texto "Ser objeto e também sujeito". Aproveito a estréia do espetáculo para destacar o texto e oportunizar novas leituras.
Ser objeto e também sujeito
Sempre me maravilho ao ouvir e presenciar um processo em criação. É
um momento onde é possível compartilhar universos em ebulição;
perceber as dúvidas como possibilidades de caminhos; é ver obras em
processo de gestação. Nessa escuta é possível vislumbrar a busca
do artista em sua tentativa de reconhecer e entender sua ação
artística, sua ação humana e as incursões do seu inconsciente.
A obra de arte, na maioria das vezes, surge a partir de uma
inquietação, algo que persiste, metaforicamente, prende o olhar
numa atitude magnética desdobrando o objeto interessado, a intenção
ou a inspiração por horas, dias e tempos. Para o artista é uma
'busca sincera', é uma perseguição que às vezes não acaba nunca.
Vi essa perseguição na respiração de Giselda Fernandes, na
apresentação do seu processo, no discurso do seu fazer, na
enumeração dos objetos que viram material de pesquisa, viram
objeto-partner, viram corpo-objeto e objeto-corpo.
Giselda Fernandes, é coreógrafa, bailarina, professora, produtora e
juntamente com Hilton Berredo, dirige o trabalho da “Os Dois
Companhia de Dança”. A companhia tem como característica a união
das artes visuais com a dança utilizando como elemento de
comunicação entre as duas áreas artísticas, objetos cotidianos. A
pesquisa com objetos traça um caminho de parceria, ou partner
segundo conceito desenvolvido por Giselda, parceiros da ação, do
movimento e do momento artístico. Partner na dança é o outro que
está inteiramente comigo. Ele é a individualidade que divide a
cena, os movimentos, o suor, e os imprevistos; que dá apoio, dá
segurança e complementa a forma numa cumplicidade onde o duplo se
torna um.
Quando conheci Giselda e entrei em contato com o seu conceito
“objeto-partner”, achei o termo poético pela ressignificação
do objeto, que deixa de ser simplesmente um elemento cênico para se
tornar sujeito do trabalho artístico.
Explorando materiais diversos, Giselda já trabalhou com bancos,
garrafões de água mineral, sacolas plásticas, vassouras e agora em
um novo momento de sua pesquisa, constrói uma relação que
extrapola no corpo como objeto; como objeto presente no corpo, mas
materialmente ausente. Ainda existe o banco, ainda existe o garrafão,
mas as propostas e intervenções se aprofundam deixando à vista a
inquietação ainda presente e que busca novas formas de questionar o
corpo-objeto-corpo.
Em cena estão os bancos e os garrafões. Os bailarinos executam
ações que podem se relacionar aos objetos. Sentam no chão, sentam
no outro, tem sua ação de sentar transformada por outro corpo,
tornando-se objeto. Em outro momento mudam de papel e manipulam o
outro, num jogo que se desenvolve pelo espaço cênico. Os bailarinos
em um momento executam ações de manipular o outro (feito objeto), e
no momento seguinte são manipulados (tornado objeto). As ações de
sentar e se equilibrar que existiam na pesquisa inicial com os
objetos cotidianos, são realizadas agora nos corpos. A ação se
deslocou da relação com o objeto para um sujeito, que não
transparece emoção ou sensação nas várias situações que
experimenta e vive no seu corpo (dominador e dominado). Mesmo com a
ausência da emoção visível dos bailarinos, pude construir textos
e histórias para aquelas ações que se desenrolavam. Penso que
Giselda insiste na nulidade do sentimento dos bailarinos para que não
se construa uma dramaticidade pessoal; mas essa dramaticidade existe
na presença viva do bailarino, e é passada ao objeto. Cria-se um
novo corpo, corpo-objeto e isso implica um novo ser, não há a
ausência do sujeito, mas sim um acréscimo na sua existência.
O movimento tem a capacidade de revolver o fundo de nossas almas;
como o rio que também revolve a areia depositada no seu fundo.
Acredito ser um exercício intenso ser revolvido pela ação
artística e suprimir a humanidade que normalmente explodiria pelos
poros, pelo olhar e pela respiração. Lembro nesse momento da
Performer sérvia Marina Abramovic que em alguns de seus trabalhos
sustenta a ação muitas vezes sem deixar transparecer uma emoção,
uma intenção, que acredito existir na água que se mistura a areia.
Como fica o sujeito - individuo nessa ação? Ele pretende tornar-se
objeto?
Na cena final do trabalho apresentado por Giselda, um bailarino
exerce uma intensa (mas poética) ação com dois bancos. O esforço
visível do seu corpo na construção da relação com o objeto,
parece um flerte com um novo corpo e toda a construção de uma nova
relação, com imposições e cessões.
A relação foi construída, a humanidade preservada e o abandono do
corpo no final, parece glorificar o conceito de partner.
Sinto transformações no caminho criativo de Giselda. Se antes ela
dialogava com o objeto que impunha limitações e desafios em sua
materialidade; agora percebo uma transferência para o sujeito que se
permite viver como objeto com todas as suas características.
Que a inquietação continue gerando ressonâncias.